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Os donos de sonhos

Na semana passada, ouvi de duas pessoas que minhas crônicas são sensíveis e minhas palavras sutis. Nesta, não há como investir sutileza. É impossível verbalizar com esmero para dizer sobre a morte de Adílio nos trilhos de um trem no Rio de Janeiro. Mais ainda quando se sabe que, após ser atropelado, outro trem foi autorizado a passar por cima do vendedor ambulante. Adílio poderia já estar morto e, portanto, era só um corpo. Tornara-se estatística. A empresa de metrô temia a retenção dos trens em pleno final de tarde. Não valia a pena socorrer o vendedor.

Lembrei-me, então, de um caso sobre o qual já escrevi em que outro ser invisível dormia no terminal de ônibus. Ele atrapalhava o crescimento da fila e sua forma natural, mas como a tudo nos adaptamos, na fila reta criava-se uma curva, uma barriga de vermes inclinada para a ignorância, que se desviava do inconveniente. O indigente passou a ser obstáculo, como um quebra-molas vivo; pisar já é algo muito atroz, então, passemos por cima. Escutei duas senhoras conversando sobre a irresponsabilidade da empresa de ônibus, que “nos faz pagar tão caro pelos seus serviços e não toma qualquer atitude a esse respeito”, dificultando o andamento da fila, tornando o trânsito embarreirado. Aquilo que a empresa de metrô antecipou.

Quem se importa? A metáfora da cegueira generalizada ensaiada pelo escritor português José Saramago abre a ferida das nossas culpas, porque, se não estamos todos cegos, estamos todos surdos, como já cantavam Erasmo e Roberto, em 1971. Queremos sempre abrir caminho para continuar o percurso feito às cegas. Se houver qualquer paralelepípedo atrapalhando-nos, somos capazes de enterrá-lo com uma única pisada. Minutos antes de enterrá-lo por completo, julgamo-lo como estranho, estragado, imperfeito, doente, é inseto repugnante feito Gregor Samsa, que se tranca para o mundo, porque tudo isso é ser bicho, é desumano.

E quem se lembra de Rafael, cujo sonho era ser estilista e, junto com esse, vários outros poderiam fazer parte de uma vida inteira sonhada? Ser um grande criador de cortes, levar sua costura aos grandes modelos, ganhar reconhecimento internacional. O dono desses sonhos surpreendeu-se, um dia, com pauladas e pedradas: aos catorze anos, foi condenado por sua orientação sexual e, agora, é só mais um número junto a todos os outros que também já sofreram.

Tudo isso me faz recordar Fernando Tatagiba, que escrevia literatura para protestar contra essas e outras tantas barbaridades da vida cotidiana. Como uma agulha que entra na pele e não se retira, seus escritos vão do mais banal dia-a-dia para o caos que nele se esconde. E dele surgem personagens instáveis que estão do outro lado do muro, e ora se deixam compreender por isso, ora se confundem. Confundem-se também com os limites entre morte e vida, ora julgando estarem vivos, ora descobrindo a própria morte. Seres um tanto desumanos para existirem, mas aí estão invisíveis para nós. Pois é disso que somos feitos – se somos visíveis, vivemos; se invisíveis, estamos mortos.

Peço desculpas a Adílio, Rafael, Saulo, Jhony, Patrícia, José, Rosângela, Thiago, e a todos os outros que serão sempre outros, vítimas de nós mesmos, morrendo na contramão e atrapalhando o tráfego. O que é justiça? Decidir sobre a visibilidade de cada um, higienizando o mundo? Espero qualquer coisa de um povo que não respeita sequer seu próprio representante. As vidas valem tão pouco e, com elas, os sonhos também são atropelados, pisados, apedrejados, julgados e não realizados.

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